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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

como uma ilha

"A noção que temos do espaço como uma estrutura contínua é apenas uma aproximação; se pudéssemos ampliá-lo com um super microscópio imaginário, veríamos um caos difuso, como bolhas de sabão amontoadas umas sobre as outras, vibrando, colidindo. Nessas distâncias minúsculas, muito menores do que o tamanho de um núcleo atômico, a própria noção de movimento como um processo contínuo deixa de fazer sentido; todo movimento é descontínuo, consistindo em saltos."
Ao buddhista estudioso e/ou praticante, este trecho do novo livro do físico brasileiro Marcelo Gleiser - A Ilha do Conhecimento - pode bem ser a descrição de estados avançados na prática da meditação vipassana.
O seguinte poderia ser um trecho de uma palestra sobre paticcasamuppada: "...o universo não 'existe lá fora', independentemente dos atos de observação. Pelo contrário, de forma ainda misteriosa, o universo é participatório." Mas é uma citação do físico teórico John Wheeler, feita no livro, para ilustrar o impacto que as observações e medições oriundas das pesquisas em física quântica tem na nossa concepção da realidade.
Já passei da fase de buscar validação científica para o buddhismo, mas continuo interessado em ciências e impressionado pelas convergências, geralmente nos pontos mais profundos, entre as duas abordagens. A ciência, em seu caminho de objetivação, medição, análise e replicação da realidade reafirma muitas das coisas do caminho buddhista da investigação introspectiva e vivência pessoal intensa. 
Neste livro, uma continuação do anterior - Criação Imperfeita - do qual já falei aqui, o autor desenvolve o questionamento das nossas limitações no que se refere a uma compreensão final e definitiva da realidade e o quanto o aprofundamento desta mesma compreensão corrobora a adoção de uma postura humilde e pragmática diante do mistério que nos envolve, tanto quanto daquilo que conseguimos saber, tornando-nos ilhas.
Na passagem ocorrida no bosque de sinsapa o Buddha deixou claro a razão de sua vida e de seu ensinamento. De toda compreensão que se possa ter da realidade, desde que ela sirva ao propósito declarado pelo Buddha, não há importância no tanto que se conhece e menos no tanto que permaneça desconhecido. O propósito é o fundamental para o buddhista. É saber porque sentar-se, porque manter a vigilância, porque esforçar-se, porque manter os preceitos que dirige a busca pelo conhecimento, e do conhecimento pessoal e direto o Buddha afirma a libertação, tornando-nos, justamente, ilhas de conhecimento no oceano do saṃsāra. Se o conhecimento final e absoluto, cada ilha saberá por si. 

Se clicar nos links nem precisa ler o texto!!

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

realpolitik

o risco de ver eleita uma presidente evangélica me faz revisitar meu ateísmo. 
mais do que o mero fato de marina silva se declarar evangélica, afinal ela tem o direito, o que incomoda é sua aparente afinação com o que de pior esta derivação do cristianismo tem entre os seus líderes aqui no brasil. afinação evidenciada pelo imediato apoio que a ela sermonam.
o problema seria menor, ou nem haveria, se ela meramente cresse, mas ao invés, seu comportamento sugere que, assim como os lastimáveis líderes, ela considera que aquilo que consta, em termos de ética, princípios de conduta e mesmo história, na obra máxima da mitologia judaico-cristã,  a chamada bíblia sagrada, é adequado ao todo da população.
difícil prever o prejuízo que isto traria à sociedade, é possível até que nenhum. há os que afirmam que aqueles líderes e suas ideias são menos que bazófia midiática e não tem relevância para o todo multifacetado da comunidade evangélica nacional. deus queira que seja assim. não sei, mas sei que dar a esse tipo de gente mesmo a impressão de poder me causa ojeriza. eu imagino esse povo que se propagandeia imbuído de uma missão sagrada tentando validar o ensino de pseudociência nas escolas, mitologia como a verdade nas escolas, forçando a intromissão oficial na intimidade das pessoas. eles tem mídia, eles tem dinheiro e há muita ignorância, miséria e medo a serem explorados no país... um quadro ao menos, por possível, digno de consideração.
na minha revisitação revejo em dawkins, hitchens, harris, para ficar só nos chamados três cavaleiros do apocalipse ou do ateísmo militante internacional, os males que a religião provocou e provoca ao mundo. isto poderia causar algum desconforto a alguém que se considera religioso como eu me considero, mas o buddhismo não é equiparado à religião por estes críticos, em geral eles até o respeitam ou ignoram. suas críticas são dirigidas ao teísmo e em especial ao monoteísmo judaico-cristão. em verdade vos digo, o monoteísmo tem um passado terrível. e não só os livros de história, mas tv e internet nos horrorizam aqui e agora.
esta coisa de ser um religioso ateu parece complicada para alguns, penso até que há infundada resistência ao termo, julgo que muito seja por conta de um equivocado espírito corporativo surgido da noção de que as religiões são iguais. coisa de que discordo.
embora seja possível ver pontos comuns, como é para quaisquer duas coisas no mundo, o teísmo parte do princípio de que a verdade última nos é divinamente revelada e vai mal encaixando os fatos da realidade nela. não há como negar que este fundamento a torna incompatível com o buddhismo que parte do exato oposto: fomenta a análise e aprofundamento na realidade experiencial que eventualmente conduzirá ao conhecimento da verdade transcendente. pelo caminho, a investigação dos fatos vai reformatando a percepção e, consequentemente, o agir do buddhista no mundo. se não para melhor, para menos ruim.
há muito que ser desenvolvido nesta abordagem, mas este breve resumo do buddhismo já deixa espaço restrito para conceituá-lo como religião, mas muito espaço para nós, ateus, assumi-lo sem qualquer constrangimento.
se há risco de criar alguma animosidade por parte de religiosos teístas por conta de tais afirmações, bom, acho que não há o que fazer da parte dos buddhistas que se assumem ateus. por mim há respeito ao direito de ter crenças, melhor quando não tomadas por conhecimento e sonhadas como verdade a ser aceita por todos como salvação. assumir-se um ateu é, assim, além de coerência para o buddhista, uma afirmativa pedagógica numa sociedade que precisa discutir e definir a influência que está disposta a aceitar de crenças e religiões e também uma exigência por tolerância que só existe verdadeiramente se houver plena aceitação de diferenças claramente afirmadas.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

taṇhā

taṇhā impede o desencanto por nos manter acreditando nos beija-flores, pores de sol, montanhas e outras coisas que se sucedem... 
sem taṇhā não há dukkha por que se a gente para no meio do desejo e, por um instante que seja, consegue uma centelha de percepção da condicionalidade, da falaciosa liberdade do eu quero, um alívio é sentido, um desencantado perceber da lamentável condição que é estar vivo... depois tudo volta ao normal se não se foi além de uma contemplação intelectual, mas me parece ser um começo... é isso ou o samsaricar saltitante como se nada houvesse para ser visto...

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

de humano para humano

para a pergunta "por que eu sou buddhista?" há algumas respostas.
mas a minha preferida é: o buddhismo é ensinamento de humano para humano. como ilustra este belo trecho do ensaio ideal solitude, do venerável ñāānanda.

sem dúvida, esta solidão física era muitas vezes apoiada pelo Buddha como um pré-requisito essencial para o desapego. assim, no final de um dos pronunciamentos mais contundentes a favor deste tipo de solidão, ele confessa ao seu ajudante, o venerável nāgita, com notável franqueza, que ficava bastante confortável, mesmo ao atender aos chamados da natureza, quando não via ninguém em frente ou atrás de si, enquanto viajava sozinho (aguttara nikāya III 344).

no doubt, this physical solitude is often upheld by the Buddha as an essential pre-requisite for detachment. thus at the end of one of the most forceful perorations in favor of this type of solitude, he confesses to his attendant, the venerable nāgita, with remarkable candor, that he is quite at ease even in answering calls of nature, when he sees none in front of or behind him while journeying all alone.

presente

no presente estou só
entre tudo passado e futuro
no presente fico só

só com a deterioração incessante de tudo que surge

há o meu eu que insiste em me acompanhar mas se irrita com as minhas perguntas sobre, afinal, qual é a sua...

se aquieta, finge que não está ali
e me sinto só por algum tempo

mas

que possa eu carregar esta solidão pelo tumulto do dia
que possa eu estar só na multidão
entre tudo passado e futuro
entre desejos e anseios
entre eu e os outros
que eu possa me lembrar do vazio de estar presente

morrendo

CLIQUE AQUI PARA SABER MAIS

um dia, descobrimos que vamos morrer. aí a vida continua, na maior parte das vezes.
há os que morrem antes de nós e por alguns deles sofremos, lamentamos, choramos. e aí a vida continua.
porque é assim que o mundo segue. é para a vida continuar.
desde aquela nossa descoberta o que importa é fazer o possível para não pensar nela antes e depois dos funerais aos quais eventualmente vamos comparecer.
no nosso mundo interior a morte ocupa um lugar exclusivo, o da certeza, e outro que divide com a doença, o envelhecimento, a dor, a perda... o lugar daquelas coisas das quais não é saudável lembrar porque vão contra a corrente do mundo. contra a corrente do mundo que compomos.
temos shoppings, séries, filmes, livros, academias, festas, competições, trabalho, conquistas, férias, religiões e muita vida pela frente. um dia vamos morrer, basta.
como é se a morte fizer parte da nossa vida é do que trata este livro. como é pensar e refletir sobre a morte antes, durante e depois dos funerais. como é viver a morte a cada segundo.
a morte, no buddhismo, tem seu papel reconhecido e aproveitado no sentido de prover uma vida mais sábia, autêntica, real, equilibrada e feliz. uma vez que é um rumo contrário ao que nos é apresentado naturalmente, é um livro que exige certa coragem. e também porque é escrito numa linguagem direta, clara e franca.
e simples.
não é um livro de novas ideias, nem de filosofadas profundas. é meramente um livro que fala de algo que está acontecendo bem diante de nós a cada pensamento, a cada olhar, a cada respiração, a cada batida do coração.
é um livro sobre a nossa morte.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

é isso...

a cada dia que passa mais certo isso me parece:

"Só de um ponto de vista vertical, mirando diretamente para baixo no abismo de sua própria existência pessoal, um homem é capaz de apreender a perigosa insegurança de sua situação; e apenas um homem que apreende isso está preparado para ouvir o ensinamento do Buddha."

Ñāṇavīra Thera

Only in a vertical view, straight down into the abyss of his own personal existence, is a man capable of apprehending the perilous insecurity of his situation; and only a man who does apprehend this is prepared to listen to the Buddha’s Teaching.

se não for assim, é como aquelas chupetas com um paninho amarrado...




apague a lanterna, cuide do seu barril

deve ter sido maravilhoso conhecer o Buddha. 
não diga! sério!? você pode ironizar... mas deixa eu continuar...
maravilhoso não só por ele ter sido o Buddha. digamos que não fosse, penso só numa característica que acho fazer valer esta minha afirmação: o Buddha era o que ensinava.
estamos nós de tal forma (talvez desde quando dormíamos e pulávamos em galhos) submersos num lamaçal de hipocrisia que, só por isso, o Buddha descrito já é um tesouro.
não vamos falar de políticos, nem da mídia, que aí é lama além da conta e podre, a gente desiste, ou quase (nem falemos de grupos de chimpanzés). ficando no dia a dia (caso você não esteja cumprindo as ordens da política nem da mídia) quantas pessoas você conhece que são o que dizem? minimamente? quantas pessoas correspondem a uma boa impressão que causem num primeiro encontro? no sentido de caráter.
no trabalho, por exemplo, quantas pessoas admiráveis você conhece e, caso tenham algum sucesso, sabe que chegaram lá graças a terem praticado o discurso que pregam hoje? não sei quantas pessoas assim seriam necessárias para um mundo melhor, por mim, conhecer uma já me faria menos triste...
e dariam algum sentido à junho de 2013...
e isto se aplica a todo tipo de convívio humano.
em religião, por exemplo. esteja preparado, seja em qual credo você estiver, para decepções em série.
estou caminhando para vinte anos de envolvimento com o buddhismo, num interesse sempre crescente, numa certeza cada vez mais prazerosa, mas em grande parte por vir neste caminho, pelos últimos dez anos, com base naquilo que encontro, ou que na maior parte me é apontado, do dhamma considerado o mais próximo do Buddha, os suttas do cânone antigo. é lá que no último discurso Ele afirma que não haverá pessoa que O suceda e que cada um dos seus seguidores deve se tornar um refúgio para si mesmo. quer dizer, sua medida, enquanto praticante do Buddha Sasana deve ser sempre o "o que eu digo versus o que eu faço". e esteja preparado para as decepções com você mesmo, mas com a diferença de que com respeito a estas você sempre pode fazer alguma coisa e, principalmente, obter resultado.
deixe o diógenes.
apague a lanterna e cuide do seu barril.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

fecha parênteses

mais uma tradução devidamente revista.
e autorizada pelo autor.
aqui o original.
e aqui.



Existência Significa Controle


Por Bhikkhu Ninoslav Ñāamoli




Para que algo exista (bhava), a fim de que exista em um sentido completo e apropriado, tal coisa tem de estar presente, em primeiro lugar, na forma de uma experiência plena. Quando eu digo "presente", isto deve ser entendido no sentido de que só podemos "encontrar" as coisas se estas já estão lá, no mundo. (Cf. a afirmação de Sartre em O Ser E O Nada que cada coisa nos chega com o passado). O fato é que as coisas só podem ser encontradas quando já estão presentes e isso significa que - fundamentalmente falando - estão além do controle1, não se pode ser o seu criador. Assim, a experiência como um todo não pode ser controlada; o máximo que uma pessoa pode fazer é modificar um já determinado estado de coisas, em um nível mais específico.

Tome-se os cinco agregados como exemplo: a sua natureza é aparecer, desaparecer, e mudar enquanto aparente, de acordo com o que é. É somente por upādāna que esta característica é obscurecida2, e ao invés dela, em tal caso, o ego aparente torna-se o agente fundamental do processo ou, pelo menos, esta é a forma como ele aparece a um puthujjana. Aquele que não está livre de upādāna, e da certeza de um ego, confunde o fato de que os cinco agregados (ou, neste caso, os cinco agregados apegados) podem ser modificados ou afetados, uma vez que surjam, com a noção de que eles podem ser controlados. Esta noção de controle também suporta (ou nutre) a visão de que o 'eu' é seu criador, o que por sua vez alimenta aquela noção, e assim indefinidamente. É por isso que com o 'ego' surge a percepção de domínio sobre a própria experiência

Attā, "eu", é fundamentalmente uma noção de domínio sobre as coisas.

(Ñāavīra Thera, Notes on Dhamma, DHAMMA)

O ego, então, como um "mestre", aparece como algo diferente, algo além dos cinco agregados apegados. Além disso, o ego continua achando a prova de sua existência constantemente ao interferir e modificar (quando possível) os estados surgidos dos cinco agregados apegados. O ego encontra prazer em fazê-lo.

Por outro lado, se o ego visse que, a despeito de toda a prova, o seu domínio na verdade requer (ou diretamente depende) dos cinco agregados, a noção de controle cessaria3. Isso deixa claro que o "ego" não pode exercer qualquer controle fundamental sobre o seu aparecer, desaparecer e mudança enquanto aparente. É por esta razão que por contemplar isto pelo tempo suficiente é possível tornar-se um arahat:

Então, monges, naquele tempo, o Buddha Vipassī permaneceu contemplando o surgimento e a cessação dos cinco agregados apegados ... E conforme ele permaneceu contemplando o surgimento e a cessação dos cinco agregados apegados, em pouco tempo sua mente se libertou do grilhões, sem restar vestígio.

(Mahāpadāna Sutta, Dīgha-nikāya 14 / II, 35)

Notas:

1 Ainda que se possa controlá-los, primeiro eles têm que existir. Em outras palavras - por sua própria natureza o controle é visto como algo além do nosso controle.

2 De fato, não é só a característica que é obscurecida, os cinco agregados não são vistos na maioria das vezes.

3 Porque para um puthujjana não é suficiente ver isso uma apenas vez. É somente com a repetição deste insight (alcançado através do esforço), que a visão habitual de controle irá desaparecer, e ser substituída (aos poucos também) pelo ponto de vista de uma inerente falta de controle - a visão da impermanência. Quando se vê que a impermanência subjaz a todos os projetos do ego, o ego deixa de ser ego, pois sem exercer controle essa individualidade não pode subsistir. (Cf. Ñāavīra Thera, Notes on Dhamma, PARAMATTHA SACCA, parágrafo 6)

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

parêntese

hoje, como ainda não havia ocorrido, publico uma tradução completa de um pequeno ensaio. pequeno e profundo. pode ser que outras traduções se sigam a esta, se assim for, serão sempre autorizadas e/ou revisadas pelo autor e/ou responsável pela publicação original. 
o original desta está aqui e no livro meanings.
boa leitura.

O sentir é sofrimento


por Bhikkhu Ninoslav Ñāamoli

 



Como alguém deve libertar-se do sofrimento?
O primeiro passo que se deve dar é aprender a não ansiar pela cessação do sofrimento. À primeira vista isso pode parecer simples, mas na verdade não é tão simples assim; pois não podemos presumir que uma pessoa comum, sem treinamento, saiba o que realmente o sofrimento é.
Para conhecer dukkha não é suficiente apenas sofrer. Para conhecer dukkha é preciso reconhecer, na presente experiência, o que é e o que não é necessário. O ponto é que, na experiência da dor, alguns aspectos são inevitáveis, enquanto outros, não. Em outras palavras - a "dolorosidade" da dor é sofrimento e não a dor em si.
Deixe-me voltar para a declaração do início de que não se deve ansiar pela cessação do sofrimento; por que isso é o essencial? A razão imediata do nosso sofrimento é, como o Buddha nos diz, o nosso anseio ou taha. É por causa de taha que nossa experiência da dor é dolorosa. Isto aplica-se aos outros dois tipos de sentir também. Assim, podemos dizer que é por causa do anseio que os sentimentos/sensações são dukkha. No primeiro tipo, no sentir desagradável, o anseio pela cessação deste sentir faz a pessoa sofrer: o sentir doloroso está presente ali, diretamente oposto ao seu anseio por que aquilo não exista, para que desapareça. Desta forma, uma discrepância é criada, uma discrepância que é nada mais que dukkha. No segundo tipo, no sentir agradável, o anseio por mais deste sentir se manifesta. Assim, o sentir agradável vigente aparece como desagradável quando a atenção se volta para o anseio por que aquele sentir aumente. A presente sensação de prazer se torna insuficiente, uma carência que precisa ser atendida. Mais uma vez a discrepância surge, e que se tenta superar pela persecução de inúmeras coisas do mundo que irão intensificar seu prazer ainda mais. Tem-se a esperança de que tal tentativa irá 'preencher a falta' interior mas, desnecessário dizer, isto é impossível, uma vez que a discrepância está, na verdade, sendo constantemente gerada pela presença de taha e não pelos vários objetos no mundo.
O pensar e o ansiar são a sensorialidade de um homem,
Não as várias coisas do mundo;
O pensar e o ansiar são a sensorialidade de um homem,
As várias coisas só estão lá, no mundo;
Mas o sábio se livra do anseio nele mesmo.
- Anguttara-nikāya.VI 63 / III, 411

Quando se trata do terceiro tipo, o sentir nem agradável nem desagradável (ou seja, neutro), o sofrimento é vivenciado como resultado de um anseio pelo sentir em si mesmo, visto que o sentir neutro não é reconhecido como tal:
O sentir neutro é agradável quando conhecido [como tal],
e desagradável quando não conhecido [como tal]
- Majjhima-nikāya. 44 / i, 303

Então, para resumir, a experiência que se tem da dor em si não é a razão para a sofrimento que se sente. É, antes, a presença do anseio na experiência do ser o porquê do sofrimento estar lá. Enquanto este continuar a ser o caso, ser-se-á uma "vítima" do próprio sentir, seja ele agradável, desagradável ou neutro.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

hollow and dry

Como ficarei sem o eu? 
Se você é buddhista, já ouviu ou fez esta pergunta. Muito provavelmente ambos.
Ajahn Chah diz nalgum texto por aí que se você passa por uma rua e alguém o xinga dia após dia, você pode começar a pensar em tomar alguma atitude. Mas aí ouve que aquela pessoa é maluca e, então, relaxa, talvez até com um sorriso.
O buddhismo, cada vez mais me parece, é simples. No início é complicado, até porque a gente quer que seja. É mais bonito. Para discípulos e mestres, uma coisa rebuscada, complexa, difícil... Mas aí, a gente vai lendo as coisas dos suttas antigos e o Buddha sempre trazendo o assunto para o palpável mundo real e ordinário, usando imagens de açougueiros, carpinteiros, fogo, pedra... tudo muito simples, direto e claro. Começamos a desconfiar de quem se deleita no complexo. Discípulos e, principalmente, mestres.
Em 'Notes On Meditation' Ven. Ninoslav Ñāṇamoli diz o seguinte sobre um resultado da prática de ānāpānasati: 

Este tipo de atenção, quando desenvolvido, não deixa nada de fora, e se vai de forma simples, mas constante, tornando mais consciente da natureza da ação, em geral, enquanto que a ação mesma está realmente presente. Em última análise, é claro, isso leva à total transparência deste "eu" nesta experiência da respiração como um todo, e sua natureza totalmente redundante que vem sendo gratuitamente assumida.  Esta natureza, se atentamente perseguida na medida necessária, pode eventualmente ser completamente entendida e o gratuito "eu" destruído. Isso, no entanto, não deve ser tomado no sentido de que o fenômeno do "eu" irá desaparecer como se nunca tivesse existido, mas no sentido de que esse "eu" deixará de ser "mim" e "meu". Ele permanecerá apenas ali, hollow and dry.

Nem traduzi hollow and dry porque está perfeito. Busque a tradução das palavras para você ver...
Mas parece que é assim. Vai ficar ali, como a coisa oca que é, seca.
Simples.
Buddhismo é isso. É mergulhar nesta bolota de deterioração com coragem imensa, para voltar, como sempre, ao Ajahn Chah. 
Bolota de deterioração é uma das minhaS definições preferidas para o acontecimento que insiste em ser eu.

terça-feira, 29 de julho de 2014

aquarela

No Anuruddha Sutta do Angutara Nikaya, o Buddha acrescenta um oitavo pensamento aos sete virtuosos que surgiram na mente meditativa do bikkhu Anuruddha. 
Os sete: 
Este Dhamma é para aquele que é modesto, não para aquele que quer o auto-engrandecimento. Este Dhamma é para aquele que está satisfeito, não para aquele que está insatisfeito. Este Dhamma é para aquele que é isolado, não para aquele que é enredado. Este Dhamma é para aquele cuja energia está estimulada, não para aquele que é preguiçoso. Este Dhamma é para aquele cuja atenção plena está estabelecida, não para aquele cuja atenção plena é confusa. Este Dhamma é para aquele cuja mente está concentrada, não para aquele cuja mente é desconcentrada. Este Dhamma é para aquele dotado de sabedoria, não para aquele cuja sabedoria é fraca.
O oitavo: 
Este Dhamma é para aquele que desfruta da não-proliferação [conceitual], que se delicia com a não-proliferação, não para aquele que desfruta e se delicia com a proliferação.
Proliferação conceitual é uma tradução para o termo pali, papañca. Termo chave no cânone antigo, há um livro maravilhoso, como acho que todos dele são, do Venerável Katukurunde Ñanananda sobre papañca e papañca-sañña-sankha.

Proliferação é, sendo simples e pragmático, dar corda ao pensamento, viajar. Viajar no pensamento é coisa às vezes bem vista na nossa mentalidade comum de seres amantes do viver (numa folha qualquer, eu desenho um sol amarelo...)
...e o futuro é uma astro nave...
Na disciplina do Buddha, o futuro não existe assim como o passado não mais. Tudo o que importa é o movediço ponto em que estamos entre dois extremos de escuridão.
Deleitar-se com o pensamento que levado pela ignorância segue a tatear por estes extremos escuros, compondo realidades a partir do que é verdadeiramente inexistente é um engodo.
Uma coisa que leva à outra, à outra e à outra pode levar a muita coisa interessante, mas não leva a nada.
O que temos é um coração que bate, um pulmão que se enche e esvazia, sentidos que nascem a cada contato e que, segundo o Buddha, é nossa mais valiosa fonte de aprendizado, nosso campo de pesquisa que, se conduzida conforme Ele ensinou, trará resultado não reproduzível nas nossas mais belas aquarelas...


terça-feira, 15 de julho de 2014

apego

por que sofremos se nos apegamos às coisas?
porque é impossível apegarmo-nos às coisas.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

fundamento

Dia desses me perguntaram: "o que você diz quando te perguntam quais são os fundamentos do theravada?" Eu respondi: "ninguém me pergunta isso!" 
Verdade. O mais profundo de que me lembro foi o "no que o buddhismo acredita?" 
Muito melhor a pergunta sobre o theravada. Porque mais difícil de responder. Por isso mesmo vou escrever o que eu responderia.
Há, penso, algumas respostas.
Aqui cabe um trecho do livro meanings que diz: ...a religião buddhismo, um fenômeno social e histórico relacionado, mas distinto dos ensinamentos do Buddha, surgiu e cresceu, transformando-se e proliferando-se (pág. 10 da edição digital, 2º parágrafo).
Citado isso, me obrigo a começar por esclarecer o que entendo ser o theravada, eu diria que é o grupo buddhista que toma o cânone pali como autoridade final. Significando que qualquer que seja o buddhismo ensinado, tal ensinamento precisa ser rastreado até o cânone pali, em letra e/ou em significado para ser aceito como buddhismo por este grupo. Ponto.
E fiel a esse ponto, eu, que me considero parte desse grupo, seguiria em diante dizendo que o fundamento deste theravada que eu concebo são as palavras do Buddha registradas nos suttas pali e reproduzidas ao aqui ao lado no blog; uma frase que é o que alimenta minha prática pessoal e deve me levar até o nibbāna se eu, um dia, a realizar completamente - disse o Buddha, mais ou menos assim: eu ensino só duas coisas, dukkha e o fim de dukkha. No lugar de dukkha, cabe tudo que não queiramos, assim como muito que, por ignorância, queremos. Para simplificar, traduzimos dukkha por sofrimento. Então, o Buddha ensinou o sofrimento e seu fim.
Aí cabe outra frase do livro citado acima: a fim de conhecer o sofrimento não é suficiente apenas sofrer (3ºparágrafo do primeiro ensaio, Feelings Are Suffering).
Não, o sofrimento não é o que pensamos. Nem conhecê-lo é.
Em Clearing The Path, escreve Ñāṇavīra TheraO leitor,(leitor ideal daquela obra, que comenta os suttas pali) presume-se subjetivamente envolvido num problema angustiante, o problema da sua existência, que é também o problema do seu sofrimento (prefácio, 1º parágrafo).
Voltando, só estas duas coisas é uma resposta possível. Duas coisas que pensamos conhecer bem, principalmente quando não pensamos sobre elas. 
Talvez, pudesse até elaborar um pouco mais e dizer que o theravada se fundamenta em nos despertar a atenção àqueles momentos que provocam a busca ideal de que fala Ñāavīra Thera. 
Há momentos em que nalgum lugar fagulha a impressão de que dukkha, a primeira coisa ensinada pelo Buddha, não é só a dor de barriga, mas também a feijoada; dukkha não é só o divórcio, mas também o apaixonar-se; dukkha é a morte, mas também o nascimento. 
E aí mesmo a segunda coisa: esta fagulha, se alimentada corretamente até tornar-se chama de sabedoria realizada, consome-se e apaga, sem deixar vestígio.
Fim da resposta e, eu sendo bem sucedido, fundamento para muitas perguntas mais.

domingo, 29 de junho de 2014

controle


num texto que li de palestra de ajahn chah, do qual não me lembro o nome mas está por aí, ele diz que alguns vez ou outra o questionavam sobre aparentes contradições no que ensinava. ele explica, então, que era assim mesmo: esse precisa ir mais à direita, o outro mais à esquerda. e aquele, quando começa a ir demais pela direita é preciso que volte pra esquerda... e vice-versa. 
fato é que o caminho do Buddha é simples assim: esteja atento ao agora! coisa que é tremendamente complicada!
eu, nessa vida há algum tempo, tenho aprendido a perceber as ordens: há momentos em que devoção faz falta e eu busco refúgio com mais intensidade... noutros que a mente está mais saltadora que o (a)normal: hora de concentrar. estudando demais? fico sem fazer nada, contemplando o tédio... 
percepção que se nutre da introspecção, é óbvio. mais um tanto de rendição, não tão fácil pois que o mundo demanda controle! direção! ação! mas a natureza condicionada e incontrolável, desconhecida e misteriosa, o assombroso desequilíbrio que é estar vivo... aqui, talvez caiba um parêntese: (aquela história de ser atraído ao buddhismo pela expectativa de controlar a mente? é bom rever...).
acabo de ler um ensaio do livro recém lançado pela path press publication, meanings, livro do qual eu certamente vou falar muito por aqui (estou no terceiro ensaio, mas voltando ao primeiro... um livro para ser lido muito, muito lentamente acompanhado de muita, muita reflexão introspectiva...): existence means control (existência significa controle). basicamente: se o engodo do controle é enchimento do existir, existir é dukkha. bom... li só uma vez... ainda ruminando...

***

...estar atento ao aqui e agora. tão repetido que a profundidade a que deveria conduzir nem sempre conduz, talvez... 
uma implicação: a ambição de encontrar um início para tudo! de onde isso veio? como isso começou? e quem criou deus? 
estar atento ao aqui e agora é abrir mão dessa obsessão e mergulhar no que ocorre, seja lá o que for...

terça-feira, 10 de junho de 2014

por que o mundo existe?

a realidade tem de ser medíocre como é.
é uma conclusão logicamente deduzida pelo autor neste que é um dos melhores livros que li recentemente e até nem tão recentemente. 
não só por essa conclusão, como podem pensar os que passam por aqui vez ou outra. o livro é bom por muito mais: é um texto descomplicado sobre o complexo embate existência versus não existência, tudo versus nada. por que existe algo, afinal, se o nada parece tão mais... adequado? a pergunta fundamental e, segundo alguns, a única que vale o filosofar.
o autor narra seus encontros e conversas com pensadores atuais que se debruçam sobre o tema tanto quanto a sua própria jornada interior a contemplar as ideias elaboradas no passado pelos grandes da filosofia.
o livro termina com a citação atribuída a ambrose bierce em the devils's dictionary: "filosofia, s. um caminho de muitos caminhos levando de lugar nenhum a nada". e não importa eu contar como termina, você já sabia, o que vale é exercitar a mente, navegar no éter das ideias, sempre um alívio quando a solidez e o peso da realidade sobrepujam nossa tolerância. eu, ao menos, aprendi isso bem cedo.
vale conhecer hipóteses de filósofos ateus por vezes mais mirabolantes que a hipótese deus. vale ver que há possibilidade lógica para muito, desde um solar otimismo até a um turvo pessimismo. vale identificar notas e tons de nossos próprios arranjos filosóficos sobre o existir na fala de gente mais autorizada a pensar que nós. e, se você for buddhista, vale, acima de tudo, refletir se o Buddha foi ou não o mais sábio e luminoso ser que se registrou ter pisado nesta terra capenga. eu cada vez mais certo de que foi. dois capítulos em especial falam alto ao buddhista - it from bit e o ego: eu realmente existo? - é verdade que quando o Buddhadhamma vai sendo absorvido pelos neurônios, ou seja lá o que for a fonte da consciência, a gente vê dhamma até no domingão do faustão. neste livro, vai se resvalando com o dhamma aqui e ali até que bem no finalzinho o Buddha é breve mas explicitamente citado, de forma que interpretei simpática - a posição de um famoso monge buddhista sobre a pergunta título é classificada como a "mais interessante", inclusive (certo que em filosofia pode não ser um elogio...), isso depois de todos os encontros profundos e reflexões de mentes brilhantes.
a mais brilhante é a do Buddha, penso eu. 
um mistério existencial, investigado sob a orientação do Buddha, leva também de lugar nenhum a nada. 
mas não é o lugar nenhum onde sempre estivemos e o nada onde aquela possibilidade de sabedoria em nós sempre sussurra que devemos nos assentar? 
é, sei lá...

segunda-feira, 2 de junho de 2014

angst

e se o universo não for um intervalo entre nada e coisa alguma?
e se não for o único?
e se a consciência for fenômeno necessário?
e se depois de se expandir ele voltar a se contrair?
e se começar de novo?
e se começar outro?
pavor.
puro pavor, tudo de novo.
ressurgir e ressurgir e ressurgir...
bilhões de bilhões de infinitos anos repetindo a história da existência...
e pior, muito pior: cada um de nós de novo, e de novo, e de novo...
bilhões e bilhões de infinitas vezes ver surgir, entre todas as insuportáveis outras cousas, um aécio neves...
pavor, puro pavor...

segunda-feira, 26 de maio de 2014

o que faz você ser budista?

li este livro em poucos dias. fiz várias anotações e destaques.
é um texto leve, divertido, claro e, apesar disso ou por isso mesmo, profundo. e indigesto, talvez, para quem preste atenção e reflita entre uma risada e outra. é um livro que recomendo a buddhistas, simpatizantes, curiosos e aspirantes por algumas razões.
uma delas: o autor não ensina técnicas, fórmulas, práticas. antes, ele esclarece a visão buddhista, o como o buddhismo interpreta a existência, aquilo que o interessado no buddhismo deve esperar encontrar.
com bom humor, o autor cita instâncias de nossa vida ordinária, como a política e a cultura pop, nos convidando a encarar a hipocrisia e o absurdo que nutre muito bem nossa ignorância.
não é uma leitura agradável para quem busca alguma arte da felicidade:

"O objetivo de Sidarta não era ser feliz. Seu caminho não conduz, ao final, à felicidade. Antes, é uma rota direta para o estado de libertação do sofrimento, libertação dos enganos, ilusões e confusões."

eu parafrasearia o título do best seller do dalai lama assim: "a arte de se aprofundar na infelicidade" como possível para o livro que é desenvolvido sobre o que o autor chama de quatro selos do buddhismo, sem os quais não há buddhismo, a saber: a postulação do existir como fenômeno interdependentemente composto e, por isso, impermanente, vazio e capenga ('capenga' é palavra minha). a estes três soma-se o nibbāna, fenômeno que está além das definições. a pessoa que, nas palavras do autor, não aceita estes princípios, não é buddhista.
há controvérsias? não para mim.
outro trecho:

"Hoje em dia, é comum encontrar gente que junta e mistura religiões, segundo sua conveniência e nível de conforto. Na tentativa de não serem sectárias, essas pessoas procuram explicar conceitos cristãos a partir do ponto de vista de Buda, encontrar semelhanças entre o budismo e o sufismo, ou entre o Zen e o mundo dos negócios. Naturalmente, sempre é possível encontrar pelo menos pequenas semelhanças entre quaisquer duas coisas sobre a face da Terra - mas não acredito que essas comparações sejam necessárias."

mais uma razão para eu recomendar: é um livro que não foi escrito para ser simpático à diplomacia religiosa, mas antes para estabelecer fronteiras sinceras. deixar claro que de cada lado deve haver amizade e respeito, mas importantes diferenças precisam ser conhecidas para o bem do viajante.
o ecumenismo pode ser um grande problema se servir à ocultação das diferenças em nome de abraços, sorrisos e fiéis que saem daqui para lá e de lá para aqui, sem se comprometer lá nem aqui. e, principalmente, sem se comprometer consigo mesmo.



"Uma vez que tenha aceitado intelectualmente a visão do budismo, a pessoa pode usar qualquer método que sirva para aprofundar seu entendimento e realização. Em outras palavras, pode se valer de qualquer técnica ou prática que contribua para transformar o hábito de pensar que as coisas são sólidas no hábito de vê-las como compostas, interdependentes e impermanentes. Essa é a verdadeira prática e meditação budistas - não apenas ficar sentado sem se mexer, como um pedaço de pau."

quer dizer, por mais gostoso que possa ser relaxar sem compromisso num centro de dhamma, conhecer gente cabeça, debater os males da sociedade e depois ir na missa, isso está longe de ser buddhismo e mais ainda de conduzir à meta que o Buddha alcançou e prescreveu. 
um livro que, devidamente lido, contemplado e refletido, oferece material para que o buddhismo seja incorporado à vida de uma forma que leva a transcender nomes e adjetivos. sendo um livro cuja proposta é deixar claro o que é ser buddhista, leva ao entendimento final de que ser buddhista é só um meio para alcançar a suprema meta de ser coisa alguma. irônico, como é o dhamma do Buddha.



 


 

segunda-feira, 5 de maio de 2014

pancupadanakhanda

Os cinco agregados são dos temas mais presentes e básicos no buddhismo. E, talvez, dos mais difíceis de entender. Graças a nossa forma comum de conhecer o mundo, enxergando ‘coisas substanciais’, tendemos a naturalmente substituir o entendimento de um ‘eu substancial’ por um composto formado por ‘cinco agregados’ não menos substanciais.
Mas no buddhismo não é assim.
Uma frase citada por Richard Gombrich no livro ‘What The Buddha Thougth’, página 131, é potencialmente a frase epigráfica para toda a nossa jornada de compreensão pelo Buddhadahamma: “para o buddhismo não há substantivos, somente verbos”.*
O que isso significa? Significa que cada vez que pensamos em entidades estanques, ainda que como componentes de alguma outra coisa, estamos errando, estamos patinando, atolados no ponto do caminho que é o pântano da mente conceitual, com todo o seu rico, diverso e perigoso ecossistema.
Os cinco agregados “infectados pelo apego”, enquanto pensados como entidades, semelhantes a peças de um quebra-cabeça, permanecem “infectados”, que é como eu traduzo o ‘affected’ usado pelo bikkhu Anālayo no trecho abaixo extraído do livro 'From Grasping to Emptiness – Excursions into the Thought-world of the Pāli Discourses (2)', página 24, que me pareceu um maravilhoso desenvolvimento da frase candidata a epígrafe citada acima, no sentido de nos ajudar na jornada de corrigir nossa visão através da lente do entendimento e da reflexão.
Esta correção de ponto de vista me parece ser fundamental mesmo aos primeiros passos no Caminho prevenindo o risco de se enraizar na lama. 


Devido a esta noção inerente de um sujeito substancial capaz exercer controle, os cinco agregados [infectados por] apego são experienciados como corporificações da noção 'eu sou'. Do ponto de vista comum, o corpo material é 'onde eu estou', sentimentos/sensações são 'como eu estou', percepções são 'o que eu estou' (percebendo), volições são 'por que eu estou' (agindo), e consciência é 'por meio do que eu sou' (experiencio). Deste modo, cada agregado oferece sua própria contribuição para o afirmar da ilusão tranquilizadora 'eu sou'. Tais noções 'eu sou' são, contudo, superimposições errôneas por sobre a experiência, carregadas do senso de um sujeito autônomo e independente que consegue obter ou rejeitar objetos substanciais distintos.**

Os cinco agregados do ponto de vista sugerido pelo texto se tornam muito mais presentes e facilmente observáveis na nossa vida ordinária do que se pensados como entidades a serem 'procuradas' enquanto sentados em meditação formal, não acham?


*for Buddhism there are no nouns, only verbs.       


**Due to this inherent notion of a substantial subject able to exert  control,  the  five aggregates  [affected  by]  clinging  are  experienced  as  embodiments  of  the  notion  `I  am'.  From the worldling's point of view, the material body is `where I am', feelings are `how I am', perceptions are `what I am' (perceiving),  volitions  are  `why  I  am'  (acting),  and  consciousness  is `whereby I am' (experiencing). In this way, each aggregate offers its own contribution to enacting the reassuring illusion `I am'.  Such  `I  am'  notions  are  but  erroneous  superimpositions on experience, conveying the sense of an autonomousand independent subject that reaches out to acquire or reject discrete substantial objects.

terça-feira, 29 de abril de 2014

na sequência

Após ter publicado o post de ontem, li a passagem do "From Grasping to Emptiness – Excursions into the Thought-world of the Pāli Discourses (2)", do Anālayo Bikkhu, que traduzo abaixo entendendo que está em linha com aquilo...

Agora, a que equivale a visão correta por meio das quatro nobres verdades? Em termos práticos, equivale a identificar qualquer forma de apego como uma causa para o surgimento de dukkha. Agora, ser capaz de identificar o apego como e quando se manifesta requer monitoramento da condição mental de forma tão contínua quanto possível. O princípio orientador para tal monitoramento é a mera pergunta: 'isso conduz a dukkha?', ou: 'isso conduz à libertação de dukkha?' - um questionamento a ser feito tanto em relação a si mesmo quanto a outros.
A repetição mental ou lembrança regular deste aforismo simples lentamente vai construindo uma consciência interior baseada neste impulso essencial, uma 'sensação' básica de seu input direcional que se torna arraigada e pré-conceitual. Colocada em prática, desta forma, a perspectiva subjacente a este aforismo acabará ressurgindo durante qualquer atividade, por si própria, a fim de fornecer a orientação necessária.

Now what  does  right  view  by  way  of  the  four  noble truths amount  to?  In practical terms, it amounts to identifying any form of attachment as a cause for the arising of dukkha. Now to be able to identify attachment as and when it manifests requires monitoring one's mental condition as continuously as possible. The guiding principle for such monitoringis the simple question: `does this lead to dukkha?', or: ‘does this lead to freedom from dukkha?’  –  a  query  to  be  posed  in  relation  to oneself as well as to others.
Regular mental repetition or reminding oneself of this simple maxim  will  slowly  build  up  an  inner  awareness  of  its  main thrust, a basic `feel' for its directional input that becomes ingrained and pre-conceptual. Put into practice in this way, the perspective underlying this maxim will eventually resurge during any activity on its own in order to provide the necessary orientation.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

o que vemos - frequentemente bloqueia nossa visão - se falhamos em 'ver através'*

Anos atrás, conversava com um professor de dhamma sobre meditação, pedia orientações sobre como manter a mente numa postura meditativa durante o dia, a certa altura ele disse, em tom bem humorado, talvez desconfiado de que eu fosse mais um maluco que faz contato com centros de dhamma misturando Santo Agostinho com Deepak Chopra e Paulo Coelho, que eu não devia, por exemplo, dirigir meu carro focado nas sensações táteis da nuca, isso poderia gerar mais problemas que solução...
Sempre lembro desta orientação - praticar concentração em trânsito é realmente algo arriscado, ainda que trânsito, mesmo numa cidade pequena como a minha, seja um local em que permanecemos parados boa parte do tempo sem muito o que fazer.
Mas tenho uma alternativa ao tédio.
No trânsito estamos no meio do símbolo maior de nossa liberdade, vitória, sucesso como seres-humanos - o carro. O carro é um ser como nós, um pet, um amigo, um amor, uma razão para muitos. Um carro é a extensão de nosso próprio corpo e mente. Um carro nos enche de um poder, nos poweriza o ego, nos acrescenta. Obra prima de Māra, enfim.
Uma das mais poderosas imagens encontradas nos suttas antigos é a da carruagem, que pode ser lido AQUI.
Desde um tempo, então, tenho feito tal contemplação quando em trânsito, analisando o que ocorre na mente ao olhar os carros, ao estar num carro, ao pensar num carro, ao admirar um carro... decorado o raciocínio do sutta, observo o que surge na mente com a palavra "carro", com a imagem "carro"... desfazendo os carros todos em suas partes que não revelam nenhum carro, sobrando só a palavra "carro", mais nada além de uma ideia...
conduzir a análise nos mesmos moldes para as pessoas que dirigem ou se movimentam entre os carros não é tão mais difícil... Alimentando a mente com a realidade do vazio...
Há inúmeras formas de manter o dhamma na mente durante o dia conferindo um sentido à vida (encontre a sua!), principalmente quando vai-se convencendo da carência de qualquer outro sentido que não o nibbāna...
O título deste post é minha tradução para a epígrafe do livro "Seeing Through - A Guide To Insight Meditation" do mestre Katukurunde Ñāananda, disponível AQUI. Uma frase que vale manter presente na mente ou coração, ou em ambos. Tanto quanto este conselho de Ajahn Chah: "A prática do Dhamma é assim. Não é que o Dhamma esteja muito longe, ele está aqui conosco. O Dhamma não é sobre anjos nas alturas ou coisas do tipo. É simplesmente sobre a gente, sobre o que estamos fazendo agora. Observe a si próprio. Às vezes há felicidade, outras sofrimento, às vezes conforto, outras dor, às vezes amor, às vezes ódio... isso é Dhamma. Você vê isso? Você deve conhecer esse Dhamma, você precisa ler suas experiências".


E, siga o conselho daquele professor: deixe para focar a nuca em casa, na rua, foque no que está à sua frente.

* What we see - so often blocks our vision - if we fail to 'see through'


terça-feira, 22 de abril de 2014

mensagem

A turma da foice dos mensageiros divinos está fazendo horas extras por aqui.
Agora foi um primo, vinte e cinco anos, ataque cardíaco de causa a se descobrir.
Acompanhar do surgimento à cessação, da saída do útero à entrada na cova, como eu acompanhei toda a sofrida trajetória daquele bom menino, pois que era um menino bom, do tipo de pessoa que permanece boa mesmo que, fosse ruim, gozasse de um inegável direito ao perdão, ah, minha amada e excêntrica família, que mensagem poderosa pode ser... Como acompanhar qualquer coisa que surge e cessa o é. Mas uma vida é um espetáculo macro, no tamanho suficiente para a nossa míope sabedoria discernir coisa ou outra...
O corpo ali e meu diálogo interior temendo o tempo, uma questão de tempo... Eu e minha amada e excêntrica família sofremos... Como tantas outras, mais ou menos excêntricas...
O jovem coração de tanto macerado desistiu, eu concluo. Considerem todas as possibilidades literais e figuradas para esta frase... Imaginem.... Seja o que for que não saibamos ser, o coração desistiu... E eu entendo...
Acompanhar uma vida toda assim nos dá uma impressão única da vanidade completa e absurda de estar aqui... Diante do caixão me vem as lembranças... Eu já deixando de ser menino pegava o menino no colo, o menino sorrindo, chorando, vez ou outra até brincávamos... Menino crescendo e a vida desabando sobre ele, a vida o enterrando vivo, e me causava angústia imensa... Sem perguntas, por favor, só ouçam... Conversávamos e conversávamos e eu julgava que podia ajudar, eu achava que podia entender mas, se acabou assim, me enganei... Poucas vezes na vida, muito poucas mesmo, experimentei a dor da compaixão com tamanha intensidade quanto naquelas conversas, naquelas conclusões, naquelas lembranças... Ainda agora me arranha o peito... 
Há alívio hoje. Ainda que egoísta. Alívio de estar apartado do sofrimento alheio. Leva ele consigo algo? Há algo? Quem sabe? Confio em quem me parece saber, tenho fé, nada mais...
Confio, tenho fé que da bondade resistente do bom menino surgirá algo melhor, uma boa colheita haverá.
A mim, o que deixa aquilo que surge e cessa? Uma mensagem, clara e profunda, a ser decifrada e compreendida. Possamos nós, minha amada e excêntrica família, não desmerecer esta mensagem.



quarta-feira, 16 de abril de 2014

condenados

a gente que pensa na morte diariamente, algumas vezes ao dia até, que se vê cadáver, que se vê apodrecendo, dissolvendo, mal cheirando, acabando. a gente ainda se choca quando um colega, de mais de década, a quem se encontra todo dia, leva duas facadas e morre na calçada quando saía para o trabalho. 
nosso ônibus passa, ele não entra e eu nem percebo. horas depois fico sabendo que não havia mais ele já naquele momento. assassinado, estupidamente, sabe-se lá por que migalha.
o tipo de choque que nos insere, de olhos arregalados, na realidade sobre a qual sabemos, pensamos e opinamos. e ignoramos. 
e começam os comentários cujo efeito em nossa mente confirma o ensinamento: ignorância nutre ignorância. basicamente: "tem que ter pena de morte nesse país!". sedutor o poder da estupidez, a gente quase concorda. como se assassinos brotassem do chão, espontaneamente, do nada, para matar nossos queridos. como se não fossem pessoas, condicionadas como nós, um flash de consciência entre trevas, superalimentada por anseio e medo.
sedutora ignorância obcecada em condenar à morte a nos manter cegos para nossa condenação à vida.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

resumindo

a quem interessar possa, um resumo do buddhismo:

tava todo mundo, humanamente, não olvidemos, sonhando ser divino.
chega o Buddha diz: "não! desiste dessa bobagem! isso aqui não tem solução! apaga tudo e não começa de novo!"
aí, divinizaram Ele.

quarta-feira, 26 de março de 2014

"Ai, meu deus!! Lá vou eu criar outra regra!!!"

Quem passa por aqui percebe que eu tenho um problema com autoridade. Se não percebe eu afirmo: tenho. 
Muito cedo, como digo em textos atrás, por volta dos dez, onze, comecei a notar a falta de sentido de deus, autoridade mor, simbólica de outras com as quais já me indispunha, mas reais e difícil de peitar.
Na minha lembrança, da que dizem ser caraterístico o falsear coisas, me incomodava tanta empáfia e onipotência para nenhuma presença, nenhum sinal, nadica de nada. É como lembro, podendo até ser isso mesmo.
Aí, já menos criança, surgiu o Buddha na minha vida. Um ser humano comum, embora não tão comum, então, mas aceitável. Um tanto divinizado pelas fontes que mo apresentavam, resultante de vir sendo moldado pelas necessidades humanas ao longo do tempo e do espaço, penso eu, mas ao menos não criara o universo! O que passou a ser minha via foi a busca pelo homem que despertou, e fui por ali, sempre atraído pelo Buddha que morreu com diarreia. Àquele outro, todo iluminado, deixando por onde encontrava.
E o Buddha histórico, com quanto mais dele me encontro, mais é fascinante e inspirador como nenhum ser divino consegue ser!
Estou terminando o livro What The Buddha Thought do acadêmico Richard Gombrich. Numa primeira leitura fica muito que só outras tornarão claro, mas neste final de livro, o capítulo sobre a construção do vinaya é especialmente agradável. Devo dizer que o livro me conquista logo no início ao descrever o Buddha como transformador da ironia em instrumento do despertar, claro que isso soa lindo para mim! O autor sustenta suas afirmações abordando o Buddha e seus sermões como resultados do seu ambiente sociocultural. Os ensinamentos, o pensamento do Buddha, conforme a proposta do livro, são esclarecidos como algo produzido sob um contexto e, contrariando o que uma consideração ligeira desta abordagem possa sugerir, de plena originalidade. E dirigindo às pessoas comuns de sua época, é um Buddha astuto, bem humorado, contestador e de ácida habilidade verbal.
Como eu dizia, do vinaya, o código de ética buddhista para a ordem monástica, é iluminador saber que o Buddha o foi construindo com base na tentativa e erro, nas palavras do autor. O Buddha ia elaborando as regras na medida em que seus discípulos iam fazendo cagad... cometendo deslizes que implicavam em problemas, conflitos internos ou má reputação perante as comunidades. Muito interessante que o Buddha, inclusive, não hesitava em voltar atrás em alguma regra dependendo do que fosse necessário. Num dos exemplos narrados no livro: em dada situação que virara problema, o Buddha proibiu que bikkhus instrutores tivessem sob sua guarda mais de um noviço. Num outro momento ele admite que para bikkhus competentes tal regra não valia. É ou não um mestre sem igual, este Buddha? Não é o tipo de mestre cujo argumento mais forte é o manto que usa ou a luz que emite, aquela mesma que só seres especiais podem ver... e acaba invariavelmente causando mais problema que solução.
Esse Buddha que vai pela minha cabeça, eu o vejo, diante de um imbróglio ou outro causado por alunos demasiadamente humanos, menear a cabeça, arquear sobrancelhas, coçar a testa e sussurrar levemente desencantado: "Ai meu deus! Lá vou eu criar outra regra!!!"
Apreciar o Buddha humano requer estudo, não creio que muito mais que isso. O Buddha divino requer outras qualidades, para mim mais difíceis de cultivar.
A virtude da fé é das minhas faltas mais evidentes. Mas quando alguém me convence por meio de exemplo, de coerência na conduta, ganha minha religiosa confiança, minha atenção e meu interesse crescentes. E o que me chega da vida e pensamento do homem que nasceu, despertou, ensinou e morreu aqui nesta terra impura me deixa cada vez mais carola.

terça-feira, 25 de março de 2014

uma introdução ao buddhismo a um cumpanheiro

no trabalho:
- jorjão, cê tem alguma religião ou tem nada?
ele sabe, mas pergunta porque quer ouvir alguma coisa da fonte. muito bom...
- eu sou buddhista, cara...
- hmmm... e no que cê acredita...? no Buddha? hehehe...
- no que acredito...? ó, a gente acredita que há um modo de ir diminuindo bastante o sofrimento, até acabar com ele. isso através de observação de si, sua mente, e do que está em volta... entre outras coisas, mas resumindo, é isso.
- hmm... mas você consegue...? você consegue dominar a mente...?
- não é tanto uma questão de domínio... é mais uma questão de conhecimento das coisas...
- hmm..
- a ideia comum das pessoas é que a gente vira uma espécie de planta... mas não é bem assim...
- hmm...
- o que ocorre é que com o conhecimento você vai ganhando um espaço para escolha...  vou tentar te dar um exemplo: sabe quando você vai num churrasco e escolhe se vai beber ou não? um dia cê pode escolher beber e ir na corrente do que vier... num outro você pode precisar dirigir, ou estar responsável por alguém e decide se segurar...
- hmm...
- então, no buddhismo a gente aprende que tudo ao nosso redor é como bebida, uma bebida que entra pelos olhos, ouvidos, boca etc. e nos embebeda, nos conduz, entorpece e influencia... ser buddhista é, basicamente, através do cultivo constante da atenção e do conhecimento que vem disso, aumentar o espaço entre nós e estas "cervejas" de modo a decidir se vamos seguir o fluxo ou nos conter...
- hmm...
- bom, tem mais coisa envolvida, mas basicamente é isso...

segunda-feira, 24 de março de 2014

a roda da vida gira para a direita

Se rejeitarmos o ātman* (ego, self), aquele que, imputando-se o nome e forma, performa o processo cognitivo, a divisão da consciência em nome e forma tem apenas o valor negativo de um ato que impede a cognição. Como tal, isto se encaixa muito bem no pratītyasamutpāda* entendido como uma cadeia de eventos que mergulha o ser humano na ignorância cada vez mais profunda de si mesmo.

*Grafia em sânscrito. Em pali seriam, respectivamente, atta e paticcasamuppada

Citação de Joanna Jurewics feita pelo acadêmico Richard Gombrich no seu livro What The Buddha Tought. Páginas 136/37.

If we reject the ātman, who,  giving himself name and form, performs the cognitive process, the division of consciousness into name and form has only the negative value of an act which hinders cognition. As such, it fits very well into the pratītyasamutpāda understood as a chain of events which drive a human being into deeper and 
deeper ignorance about himself." 



terça-feira, 18 de março de 2014

aquele alguém especial

todo mundo tem alguém especial. 
é isso? deve ser... se não todo mundo, ao menos eu tenho: aquela pessoa que me lembra, a cada encontro, que estou longe de ser o que penso, ou que gostaria de ser. aquela que me lembra do caminho sobre o qual gosto tanto de escrever.
aquela pessoa, tão desprezível se me apresenta, tanta aversão me desperta, me traz à realidade de que metta sobre a almofada é outra coisa. na ordinária vida fico feliz por não lhe desejar mal. é o que dá para fazer.
constrangido diante de mim mesmo lembro do sutta em que o Buddha afirma que não será considerado seu discípulo aquele que mesmo tendo seus membros serrados nutrir ódio pelos serradores. olho para o infeliz na minha presença e lhe desejo felicidade proporcional à distância que se mantiver de mim. e, sempre, que tenha um bom renascimento.
preferencialmente do outro lado de qual mundo seja que estivermos dividindo.
meditar em metta me parece ser paralelo às práticas tântricas de trazer o resultado futuro para o momento presente, quando tantristas se visualizam como seres puros, habitando mundos puros. sentado na almofada, distribuindo amor aos seis cantos, é estar neste estado ideal. 
mas a vida é a vida.
e não é só uma questão das pessoas que se tornam especiais daqui para a frente ou pouco antes. tem aquelas que marcaram e, até que possível o contrário, estão imperdoáveis. 
há coisas que só se perdoa sobre a almofada. ao primeiro encontro ou lembrança: é, ainda está longe o despertar!
catastrófico quando tais marcas são impressas por aqueles a quem temos o dever de amar, que idealmente serviriam de parâmetros para que desenvolvêssemos amor por todos os outros: nós, os pais. estes seres que podem ser tão terríveis. aí a dificuldade de perdoar em todo seu poder de frustração. 
ó vida.
devo me ater a este estado (miserável) de coisas? suportarei este encarar a dificuldade do perdão? que outra opção além de sentar, ou nem sentar, e me imaginar amando o mundo...? fazem bem esses momentos, é fato. isso já bastaria mas, além, é treino recomendado expressamente pelo Buddha como condutor ao nibbana, ao fim final, àquele estado em que amar, não amar, perdoar, não perdoar serão questões sem sentido...
é acreditar e seguir em frente e, no final das contas, grato à toda pessoa especial.

Speech by ReadSpeaker